domingo, outubro 02, 2011

Os gritos de André


A prodigalidade também existia em nossa casa.
(...)
A prodigalidade sempre existiu em nossa mesa.
(...)
Mas comemos sempre com apetite.
(...)
Mas comemos até que ele desapareça; é assim que cada um em nossa casa sempre se levantou da mesa.
(...)
Eu não disse o contrário, acontece que muitos trabalham, gemem o tempo todo, esgotam suas forças, fazem tudo que é possível, mas não conseguem apaziguar a fome.
(...)
Eu também tenho uma história, pai, é também a história de um faminto, que mourejava de sol a sol sem nunca aplacar sua fome, e que de tanto se contorcer acabou por dobrar o corpo sobre si mesmo alcançando com os dentes as pontas dos próprios pés; sobrevivendo à custa de tantas chagas, ele só podia odiar o mundo.
(...)
Toda ordem traz uma semente de desordem, a clareza, uma semente de obscuridade, não é por outro motivo que falo como falo. Eu poderia ser claro e dizer, por exemplo, que nunca, até o instante em que decidi o contrário, eu tinha pensado em deixar a casa; eu poderia ser claro e dizer ainda que nunca, nem antes e nem depois de ter partido, eu pensei que pudesse encontrar fora o que não me davam aqui dentro.
(...)
Queria meu lugar na mesa da família.
(...)
Jamais os abandonei, pai; tudo o que quis ao deixar a casa, foi poupar-lhes o olho torpede me verem sobrevivendo à custa das minhas próprias vísceras.
(...)
Não falo deste alimento, participar só da divivisão deste pão pode em certos casos simplesmente ser uma crueldade: seu consumo só prestaria para alongar a minha fome; tivesse de sentar-me a mesa só com este fim, preferiria antes me servir de um pão acerbo que me abreviasse a vida.
(...)
Não importa.
(...)
Não, pai, não blasfemava, pela primeira vez na vida eu falava como um santo.
(...)
Por ora não me interesso pela saúde de que o senhor me fala, existe nela uma semente de enfermidade, assim como na minha doença existe uma poderosa semente de saúde.
(...)
Não acredito na discussão dos meus problemas, não acredito mais em troca de pontos de vista, estou convencido, pai, dde que uma planta nunca enxerga a outra.
(...)
Admito que pense o contrário, mas ainda que eu vivesse dez vidas, os resultados de um diálogo pra mim seriam sempre frutos tardios, quando colhidos.
(...)
Ninguém vive só de semear, pai.
(...)
Isso já não me encanta, sei hoje do que é capaz esta corrente; os que semeiam e não colhem, colhem contudo do que não plantaram; deste legado, pai, não tive o meu bocado. Porque empurrar o mundo pra frente? Se já tenho as mãos atadas, não vou por minha iniciativa atar meus pés também; por isso, pouco me importa o rumo que os ventos tomem, eu já não vejo diferença, tanto faz se as coisas andem para frente ou que elas andem para trás.
(...)
Não se pode esperar de um prisioneiro que sirva de boa vontade na casa do carcereiro; da mesma forma, pai, de quem amputamos os membros, seria absurdo exigir um abraço de afeto; maior despropósito que isso só mesmo a vileza do aleijão que, na falta de mãos, recorre aos pés para aplaudir seu algoz; age quem sabe com a paciência proverbial do boi: além do peso da canga, pede que lhe apertem o pescoço entre os canzis. Fica mais feio o feio que consente o belo...
(...)
E fica também mais pobre o pobre que aplaude o rico, menor o pequeno que aplaude o grande, mais baixo o baixo que aplaude o alto, e assim por diante. Imaturo ou não, não reconheço mais os valores que me esmagam, acho um triste faz-de-conta viver na pele de terceiros, e nem entendo como se vê nobreza no arremedo dos desprovidos; a vítima ruidosa que aprova seu opressor se faz duas vezes prisioneira, a menos que faça essa pantomina atirada por seu cinismo.
(...)
Estranho é o mundo, pai, que só se une se desunindo; erguida sobre acidentes, não há ordem que se sustente; não há nada mais espúrio do que o mérito, e não fui eu que semeei esta semente.
(...)
Não quero dizer nada.
(...)
Não, pai, eu não estou perturbado.
(...)
De ninguém em particular; eu só estava pensando nos desenganados sem remédio, nos que gritam de ardência, sede e solidão, nos que não são superfluos em seus gemidos; era só neles que eu pensava.
(...)
misturo coisas quando falo, não desconheço esses desvios, são as palavras que me empurram, mas estou lúcido, pai, sei onde me contradigo, piso quem sabe em falso, pode até parecer que exorbito, e se há farelo nisso tudo, posso assegurar, pai, que tem também aí muito grão inteiro. Mesmo confundindo, nunca me perco, distingo pro meu uso os fios do que estou dizendo.
(...)
Já disse que nã acredito na discussão dos meus problemas, mas estou convencido também de que é muito perigoso quebrar a intimidade, a larva só me parece sábia quando se guarda no seu núcleo, e não descubro de onde tira a força quando rompe a resistència do casulo; contorce-se com certeza, passa por metamorfoses, e tanto esforço só para expor ao mundo a sua fragilidade.
(...)
Forte ou fraco, isso depende: a realidade não é a mesma para todos, e o senhor não ignora, pai, que sempre gora o ovo que não é galado; o tempo é farto e generoso, mas não devolve a vida aos que não nasceram; aos derrotados de partida, ao fruto peco já na semente, aos arruinados sem terem sido erguidos, não resta outra alternativa: dar as costas para o mundo, ou alimentar a expectativa da destruição de tudo; de minha parte, a única coisa que sei é que todo meio é hostil, desde que nege direito a vida.
(...)
É um ponto de vista.
(...)
O senhor não me entendeu, pai.
(...)
Em parte alguma, menos ainda na família; apesar de tudo, nossa convivência sempre foi precária, nunca permitiu ultrapassar certos limites; foi o senhor mesmo que disse há pouco que toda palavra é uma semente: traz vida, energia, pode trazer inclusive uma carga explosiva no seu bojo: corremos graves riscos quando falamos.
(...)
O amor que aprendemos aqui, pai, só muito tarde fui descobrir que ele não sabe o que quer; essa indecisão fez dele um valor ambíguo, não passando hoje de uma pedra de tropeço; ao contrário do que se supõe, o amor nem sempre aproxima, o amor também desune; e não seria nenhum disparate eu concluir que o amor na família pode não ter a grandeza que se imagina.
(...)
Não acho que sejam extravagâncias, se bem que já não me faz diferença que eu diga isto ou aquilo, mas como é assim que o senhor percebe, de que me adiantaria agora ser simples como as pombas? Se eu depositasse um ramo de oliveira sobre esta mesa, o senhor poderia ver nele apenas um ramo de urtigas.
(...)
Se sou confuso, se evito ser mais claro, pai, é que não quero criar mais confusão.
(...)
Estou cansado, pai, me perdoe. reconheço minha confusão, reconheço que não me fiz entender, mas agora serei claro no que vou dizer: não trago o coração cheio de orgulho como o senhor pensa, volto para casa humilde e submisso, não tenho mais ilusões, já sei o que é solidão, já sei o que é miséria, sei também agora, pai, que não devia ter me afastado um passo sequer da nossa porta; daqui pra frente quero ser como meus irmãos, vou me entregar com disciplina as tarefas que me forem atribuídas, chegarei aos campos de lavoura antes que ali chegue a luz do dia, só os deixarei bem depois do sol se pôr; farei do trabalho a minha religião, farei do cansaço a minha embriaguez, vou contribuir para preservar a nossa união, quero merecer de coração sincero, pai todo o teu amor.
(por Raduan Nassar fazendo a voz de André no livro Lavoura Arcaica em seu capítulo 25)
(com um agradecimento a minha amada Scheilla Cardoso, pelo presente há tanto tempo já dado, e que é até hoje um dos melhores que já ganhei na vida, além é claro de tê-la conhecido, é lógico).


Nenhum comentário: