quarta-feira, setembro 26, 2007

O HOMEM INVISÍVEL

Não, não é ficção científica. Essas coisas ainda não acontecem por aqui. Mas o Deodato realmente tornou-se invisível. Todo mundo olhava para ele, mas era como se não existisse. Nada espetacular e glamourizado como o Homem Invisível daquele seriado americano da década de 1970, assim tornado pelos efeitos de um acidente radioativo. Deodato não era um cientista, mas um homem comum. Só vim saber o seu nome, e também um pouco de sua história, bem mais tarde pelos jornais, que contaram na crônica policial – com um pouco de surpresa e culpa – o seu silencioso infortúnio. Acharam em seu bolso de mendigo um bloquinho de papel, a única coisa que guardava com capricho, como se fosse um testamento – não desses para deixar pecúnia. Mas um muito mais valioso: verdadeiro patrimônio humano. Para sobreviver às intempéries, guardava-o enrolado no plástico de um saco de açúcar Cristal. Era um alerta sobre a sua história, para todos nós, onde num trecho relatava, sem egoísmos: “sei que o que estou passando outros milhões também passam em silêncio”. Ele tinha consciência de sua solidão e de sua invisibilidade: “outro dia no sinal estendi a mão em busca de um trocado e o sujeito dentro do carro, vidro fechado, evitando o fogo da tarde, fez de conta que eu não existia. Nem me olhou para dizer um não. Isso sempre é melhor do que o desconhecimento”.
É ele quem vai falar o tempo todo. Serei apenas o veículo dessa comunicação. Como foi parar nas ruas? Era uma história longa, que preenchia várias folhas com uma letra minúscula, cheia de reparos – como a querer consertar a vida disse o jornalista. Mas a mim pareceu ser vergonha de se expor irremediavelmente ao mundo todo – tinha certeza de que iriam lê-lo um dia. “Eu sou um homem do Nordeste. São Paulo foi um sonho que vi virar pesadelo. Em primeiro lugar porque nunca consegui trabalho – vivia de biscate e, muito depois, de esmolas. E depois porque, desde que casei, a mulher se deu melhor com o vizinho do que comigo. Me meteu os pés na bunda e fui parar na rua, me enchendo de pinga para esquecer tudo”.
Mesmo toda a vida sendo um homem simples e sem posses, Deodato sentiu e descreveu a chegada ao fundo do poço: “quando eu vivia de biscate e morava na favela, ainda existia para muita gente. Muitos deles me davam bom dia, conseguia um crédito na padaria da esquina. Alguns companheiros de tragos no bar me chamavam de Déo”. Na rua conheceu o verdadeiro opróbrio: “na rua as pessoas ou te olham com a cara ruim, ou te ignoram. Quase toda vez que me aproximava de uma com a mão estendida, ela virava o rosto de banda, olhando para o outro lado como se procurasse alguém; mesmo se do outro lado corressem um longo muro sujo e a calçada deserta”.
Quando chegou ao irrefutável conhecimento de quem era, mesmo no estado degradante em que se encontrava, ainda sofreu. E isso eu vi claro nas letras trêmulas com as quais escreveu a breve sentença – eu estive com o jornalista que redigiu a notícia e ele me mostrou o bloquinho: “eu não sou ninguém. Eu não existo!”. Em certo trecho do seu testamento quase fui às lágrimas. Ele escreveu, por certo, ao abrigo de alguma marquise de prédio no centro velho de São Paulo, ou ao léu em alguma praça enquanto queimava jornais e papelões para espantar o frio da noite: “para mim todo dia chove. O mundo é um borrão que vejo por trás de uma cortina de água”. Eram as lágrimas dos momentos de dor aguda. Descobri com Deodato que o homem perde tudo: bens, família, dignidade, mas nunca a capacidade de emocionar-se.
“E como souberam de sua história?” perguntei ao jornalista ainda na redação. Ele coçou o queixo, abriu a gaveta da escrivaninha do computador, depositou o bloquinho entre outros papéis – ainda envolto no saco de açúcar – e apagou o cigarro no cinzeiro antes de falar. “Foi simples. Deodato um dia deixou de ser invisível”. “Quando?”, perguntei intrigado. “Quando morreu, homem! Os cachorros foram os primeiros a descobri-lo. Depois veio a inhaca do cadáver...a vizinhança incomodada...e você sabe como são essas coisas”.
Acredito que Deodato augurou esse momento: “Um dia ainda vão me ver”. Mas o jornalista discordou de mim. Na sua versão romantizada, Deodato quis acrescentar à capacidade de se emocionar que o ser humano nunca perde, a despeito de como leva a vida, a condição de jamais abdicar de sonhar.

jjLeandroi


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