terça-feira, agosto 24, 2010

Intempéries







por Ivan Abreu no seu facebook


Sábado, quando pus meus pés em terra firme, já me esperavam Guaraná Antártica e pão de queijo. Domingo fizemos um churrasco no balcão – picanha argentina com direito a vinagrete e farofinha. Segunda-feira choveu, refrescou um pouco o ar da noite e minha mulher teve desejos de tomar uma sopa. Aproveitei a oportunidade para dar fim em um pacote de canjiquinha que sobrevivera do inverno passado. Canjiquinha com costelinha. Tradicional. Mineiramente tradicional. Quarta e quinta correram sem nenhuma novidade especial: um dia ela fez uma pasta napolitana de lamber os dedos, no outro eu fiz cocha de frango ao vinho branco e cardamono. Fiz no forno. Com bastante legume, claro. Como manda o figurino. Sexta-feira foi a vez de uma rapidíssima e providencial tortilla espanhola. Ligeira e fácil de preparar. Comemos no mesmo prato, antes de sair à noite para dançar e rever alguns amigos na parte nova da cidade.
No sábado seguinte ela me comprou de presente uma edição impressa do “EL PAÍS”, pegamos o trem e fomos visitar o pai dela em Haia. Alegrei-me ao vê-lo forte, disposto e recuperado do duro momento e das horas de saúde em baixa sofridas nos últimos meses. Sobreviver a duas operações de pulmão é praticamente uma glória.
Passeamos pelo mercado juntos. Todos aqueles cheiros, toda aquela gente, o som dos pregoeiros, as vozes misturadas, as cores dos vestidos das mulheres africanas, as mulçumanas sempre caminhando em grupo, o calvo que fazia demonstração de um incrível – segundo ele – produto de limpeza. Comprei meio quilo de cerejas frescas que fomos comendo pelas ruelas do mercado enquanto escolhíamos o que levar para casa.
Comemos no quintal, debaixo de um tíbio sol de verão. O menu foi em minha homenagem: música angolana, cerveja belga, queijo holandês, hering com cebola – um dos meus manjares preferidos neste mundo de muitos deuses e pouco consenso – salada de abacate, tomate cereja e muzzarela. E como prato principal, peixe. Sliptong frito. Muitos. Vários. Acho que devo ter comido uma dezena. E fiquei com os movimentos corporais comprometidos. (Esta minha fama de comilão às vezes me derruba). Tive que comer tudo.
Depois caminhamos até a estação de trem. A idéia era poder voltar ao ritmo normal das coisas. No caminho passamos por uma sorveteria italiana: pistache com melão. Sempre pistache com melão. Não há muito segredo. Um dia, faz anos, provei esta combinação e nunca mais pedi outra coisa. Nunca mais.
Antes de subir ao trem, tentei ligar para casa de meus pais pela segunda vez de um telefone público. Queria falar com minha irmã e dar-lhe um beijo de feliz aniversário. Seria um beijo distante, porém carinhoso. Mais um dos vários momentos importantes que estou ausente. Carreguei o telefone com moedas de um euro e disquei a longa seqüência de números. Outra vez sem sucesso. Esperei chegar em casa para buscar na agenda os números dos celulares e poder falar com ela. O que encontrei foi um e-mail cujo conteúdo era curto e direto. Escrito justamente por minha irmã. Minha avó, madrinha e pessoa querida havia morrido naquela manhã de sábado. Do outro lado do Oceano Atlântico. Frágil e miúda como vi nas fotos mais recentes. Há quase dois anos de distancia do nosso último beijo e abraço. Demorei alguns minutos parado na frente da tela do computador. Demorei um tempo para chorar. Grunhi alguma coisa. Um impropério abafado. Minha mulher veio até mim. Perguntou o que havia acontecido. Lhe dei a noticia triste e ela me abraçou. Ela também triste. Tentou me consolar. Pouco a pouco ela foi conseguindo seu objetivo. Pouco a pouco seus braços foram fazendo mais sentido que a agonia e a falta de ar. E a falta de chão. Peguei os números de celular e, via skype, esta maravilha da minha geração, liguei para meu pai e depois para meu irmão. Meu pai estava ao lado de minha mãe e pude falar com os dois. Meu irmão estava mais silencioso que o normal e passou o telefone para minha irmã ao cabo de alguns segundos e duas frases. Todos estavam tranqüilos. Eu não. Todos já haviam enxugado suas lagrimas no ombro mais próximo; eu ainda soluçava buscando controlar a sensação de impotência. Minha mãe sugeriu que eu buscasse consolo no colo de minha mulher – coisa que já eu já fazia por um puro impulso natural. E me fez realmente bem os abraços dela.
Depois de algum tempo, ela me trouxe uma chávena de chá irlandês e me acalmei um pouco. A cada sorvo um tanto mais tranqüilo. Mas não conseguia parar de pensar. Pensava que, embora o mundo esteja todo ele insossamente aproximado, quase sem aventuras que viver por nenhum lado, que distancias se encurtam à base de um clique e poucos milhares de dinheiro, há coisas como a morte de uma avó que nunca deixarão de ser a velha notícia dolorosa e triste de sempre. A surpresa maldita. Aquela noticia que te devolve o sentido do tempo, que te joga de encontro a ti mesmo.
As viagens são um bálsamo. Mover, para alguns, fato necessário. Mas se você sair para velejar, saiba que o mar também tem suas noites escuras de tempestade. Esteja você preparado ou não para isto, marinheiro. 

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Meu comentário:  (como se precisasse) ....  é isso aí, o mundo muda muito rápido... pra ficar sempre como ele sempre foi...




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