domingo, agosto 30, 2009

Eu e o Cinema

Enquanto mero espectador das mudanças que alteravam o cenário da cidade, eu procurava me divertir para superar a redução em meu círculo de amizades, afinal a vida continuava. As opções resumiam-se ao parque na praça Cândido Mendes, diante de minha casa ao lado do cartório do velho e calvo Daniel Rego, e ao Cine Carolina, duas quadras atrás da praça, cujo altofalante gritava os nomes dos filmes nas noites e matinês dos finais de semana.

Ali assisti ao meu primeiro filme. Não foi uma boa experiência. Não havia àquele tempo qualquer classificação dos filmes por faixa de idade ou restrição à presença de criança nas sessões. Valia tudo. Os filmes eram antigos, com anos de atraso. A maioria das películas em preto-e-branco, de tanto manuseio, tinha inúmeros riscos brancos dificultando a identificação da cena.

Mas era um filme.

E o cinema causou tanto impacto quando chegou a Carolina que enlouqueceu um homem ou, na melhor das hipóteses, ele achou uma razão prática para a sua loucura. Foi o Bia Louro. Quando viu Charles Chaplin, quis sua vida em preto-e-branco. Rápido arranjou um paletó retrô, uns sapatões de palhaço e um chapéu-coco. A bengala, de um tio falecido décadas atrás, completou o conjunto. Não mais admitiu em sua vida outras cores que o preto e o branco. Cultivou um bigodinho que o deixava não com a cara de Carlitos, mas como a sombra do ditador germânico que arrastou o mundo à conflagração da década de 1940. Sem respeito algum, muitos frequentadores do cinema chamavam-no Hitler. Paravam diante dele à entrada principal — onde religiosamente se postava todo dia desde os primeiros anos da década de 1950 —, perfilavam, jogavam abruptamente o braço para o alto e gritavam com um riso sardônico: Heil Hitler! Ele enrijecia o corpo, como tocado por uma corrente elétrica, segurava com firmeza à mão esquerda a bengala assentada no chão, abria um sorrisinho idiota que distendia o bigodinho e parecia realizado. Aos primeiros sons do altofalante ele chegava, surgido de uma bruma do passado, e ali na rua, diante do cinema, bamboleava o corpo incansavelmente de um lado a outro com passinhos miúdos, parecendo pato novo. Quando os espectadores saíam da sessão, a escuridão da noite já o havia engolido.

Foi no meu primeiro filme que vi aquela figura senil, decrépita, o bigodinho não mais preto, mas gris —formando um triste conjunto com o velho paletó e o chapéu-coco —, amargando o escárnio público. Foi um choque tão grande quanto o meu primeiro filme. Passei arredio, dando voltas para evitá-lo, enquanto algumas pessoas cumprimentavam-no à moda nazista.

Mesmo assim entrei com gosto pela primeira vez no cinema. Eu e Paulo. Mais velho três anos que eu, acredito que ele fosse assíduo nas matinês. Minha mãe nos havia arrumado, não esquecendo de conferir com o zelo habitual todos os detalhes da roupa, o cabelo — curto e gomalinado — brilhando. No bolso, o dinheiro para a pipoca na porta do cinema e as tradicionais recomendações de cuidado que não ouvi pois era grande a minha ansiedade.

O filme era de terror, por sinal um ordinário terror. Homens com paletós de gola alta e cartolas esgarçavam a boca a todo o momento, mostrando os grandes dentes de vampiro —mais para amedrontar a plateia que os inimigos. Ao mau espetáculo os presentes opunham gritos de medo e suspiros que davam maior peso ao suspense vagabundo, nem um pouco ligando para a qualidade do filme.
Eu contorcia as mãos de medo, encolhia-me na cadeira de madeira compensada, agradecendo que a escuridão da sala não permitisse verem o meu vexame. Na hora em que alguns homens de paletós pretos abriram uma cova e preparavam-se para estocar com um pedaço de pau o vampiro dentro do caixão, não resisti: escondi a cabeça entre as pernas e assim fiquei até o final do espetáculo. Remoía uma certeza enquanto ouvia os gritos dos atores se misturarem aos da plateia: ‘não vou enlouquecer como o Bia Louro, não vou!’

Fora do prédio, ao final da sessão, Paulo questionou o meu suor. Restou-me dizer, desconversando, que a sala era muito abafada e suara além do comum.
Em casa, naquela noite de domingo, o medo me dominou. Não podia ficar sozinho, estava sempre grudado em meu pai ou minha mãe, pois do contrário me sentiria à mercê dos homens de cartolas pretas e grandes dentes de vampiro. Queriam cravar-me também uma estaca no peito por minha intromissão no filme deles, acreditava. Desconfiava que a loucura do Bia Louro fora forjada em circunstâncias idênticas.

Por algum tempo evitei ir ao cinema. Se cinema era aquilo, esconjuro!, não era para mim. Não conseguiria dormir à noite, como não consegui naquele dia sonhando com vampiros e homens de paletós de gola alta.

Paulo foi por muito tempo sozinho ou na companhia de minha irmã Josete, mais velha que eu, ou de João. Antes de o espetáculo começar ele ficava à frente do cine, onde as pessoas se concentravam, conversando com os amigos, trocando revistas que comprara, lera e passava adiante, ou comendo pipoca. Tinha muitos gibis: Superman, Homem-Aranha, Cavaleiro Negro, Fantasma.

Na volta, eu ia encontrá-lo ainda na praça, para conferir quais as novas revistas que trazia e disfarçadamente saber se o Bia Louro ainda fazia plantão por lá junto com os vampiros de paletó.

Postado por jjLeandro no jjLeandro em 6/27/2009 11:00:00 AM no
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