segunda-feira, março 29, 2010

E as Palavras Onde Estão (por Armando Nogueira)

"E as palavras, eu que vivo delas, onde estão? Onde estão as palavras para contar a vocês e a mim mesmo que Tostão está morrendo asfixiado nos braços da multidão em transe? Parece um linchamento: Tostão deitado na grama, cem mãos a saqueá-lo. Levam-lhe a camisa levam-lhe os calções. Sei que é total a alucinação nos quatro cantos do estádio, mas só tenho olhos para a cena insólita: há muito que arrancaram as chuteiras de Tostão. Só falta, agora, alguém tomar-lhe a sunga azul, derradeira peça sobre o corpo de um semi-deus.

Mas, felizmente, a cautela e o sangue-frio vencem sempre: venceram, com o Brasil, o Mundial de 70, e venceram, também, na hora em que o desvario pretendia deixar Tostão completamente nu aos olhos de cem mil espectadores e de setecentos milhões de telespectadores do mundo inteiro.

E lá se vai Tostão, correndo pelo campo afora, coberto de glórias, coberto de lágrimas, atropelado por uma pequena multidão. Essa gente, que está ali por amor, vai acabar sufocando Tostão. Se a polícia não entra em campo para protegê-lo, coitado dele. Coitado, também, de Pelé, pendurado em mil pescoços e com um sombrero imenso, nu da cintura para cima, carregado por todos os lados ao sabor da paixão coletiva.

O campo do Azteca, nesse momento, é um manicômio: mexicanos e brasileiros, com bandeiras enormes, engalfinham-se num estranho esbanjamento de alegria.

Agora, quase não posso ver o campo lá embaixo: chove papel colorido em todo o estádio. Esse estádio que foi feito para uma festa de final: sua arquitetura põe o povo dentro do campo, criando um clima de intimidade que o futebol, aqui, no Azteca, toma emprestado à corrida de touros.

Cantemos, amigos, a fiesta brava, cantemos agora, mesmo em lágrimas, os derradeiros instantes do mais bonito Mundial que meus olhos jamais sonharam ver. Pela correção dos atletas, que jogaram trinta e duas partidas, sem uma só expulsão. Pelo respeito com que cerca de trezentos profissionais de futebol se enfrentaram, músculo a músculo, coração a coração, trocando camisas, trocando consolo, trocando destinos que hão de se encontrar, novamente, em Munique 74.

Choremos a alegria de uma campanha admirável em que o Brasil fez futebol de fantasia, fazendo amigos. Fazendo irmãos em todos os continentes.

Orgulha-me ver que o futebol, nossa vida, é o mais vibrante universo de paz que o homem é capaz de iluminar com uma bola, seu brinquedo fascinante. Trinta e duas batalhas, nenhuma baixa. Dezesseis países em luta ardente, durante vinte e um dias — ninguém morreu. Não há bandeiras de luto no mastro dos heróis do futebol.

Por isso, recebam, amanhã, os heróis do Mundial de 70 com a ternura que acolhe em casa os meninos que voltam do pátio, onde brincavam. Perdoem-me o arrebatamento que me faz sonegar-lhes a análise fria do jogo. Mas final é assim mesmo: as táticas cedem vez aos rasgos do coração. Tenho uma vida profissional cheia de finais e, em nenhuma delas, falou-se de estratégias. Final é sublimação, final é pirâmide humana atrás do gol a delirar com a cabeçada de Pelé, com o chute de Gérson e com o gesto bravo de Jairzinho, levando nas pernas a bola do terceiro gol. Final é antes do jogo, depois do jogo — nunca durante o jogo.

Que humanidade, senão a do esporte, seria capaz de construir, sobre a abstração de um gol, a cerimônia a que assisto, neste instante, querendo chorar, querendo gritar? Os campeões mundiais em volta olímpica, a beijar a tacinha, filha adotiva de todos nós, brasileiros? Ternamente, o capitão Carlos Alberto cola o corpinho dela no seu rosto fatigado: conquistou-a para sempre, conquistou-a por ti, adorável peladeiro do Aterro do Flamengo. A tacinha, agora, é tua, amiguinho, que mataste tantas aulas de junho para baixar, em espírito, no Jalisco de Guadalajara.

Sorve nela, amiguinho, a glória de Pelé, que tem a fragrância da nossa infância.

A taça de ouro é eternamente tua, amiguinho.

Até que os deuses do futebol inventem outra".

Armando Nogueira - O anjo das pernas tortas

"Driblar, tendo pernas tão tortas - e driblar como ninguém - eis um mistério de Garrincha que eu não ouso explicar; Driblar, tendo uma perna mais curta que a outra - e driblar como ninguém - eis um mistério de Garrincha que tu não ousas explicar; Driblar, tendo um desvio na espinha dorsal - e driblar como ninguém - eis um mistério de Garrincha que ele não ousa explicar... Driblar, quase sempre para o mesmo lado, repetindo o gesto mil vezes para mil vezes afirmar-se negando o próprio conceito de drible - eis um mistério que não ousais explicar... Driblar - e driblar com tanta graça e naturalidade - eis um mistério de Garrincha que só Deus pode explicar.

Armando Nogueira - Nilton Santos

"Tu, em campo,
parecia tantos,
E, no entanto,
que encanto!
Eras um só;
Nílton Santos."

Armando Nogueira - Tostão e Dirceu Lopes

"O time do Cruzeiro deu alegria ao carioca em férias: Maracanã fechado, ficamos todos em casa vendo o maravilhoso futebol do tricampeão mineiro. Como é fluente, como é cristalino o estilo do Cruzeiro, a equipe segundo a observação de Paulo Mendes Campos, mais equilibrada emocionalmente "neste Pais de psicologia tão tumultuada".

Perfeito, poeta: o time do Cruzeiro, que reflete a espontaneidade de Tostão e Dirceu Lopes, é impertubável na sua determinação de jogar futebol: não faz cera, não da, nem troca pontapés e sabe exibir sua superioridade sem esnobações, sem olés debochativos.

Como não sou egoísta - pelo menos em materia de futebol - estou certo de que os mineiros do Cruzeiro, do Mineirão ou da Academia Mineira de Letras estão documentados em filmes da carreira brilhante e histórica do time do Cruzeiro.

Façam isso, sim, senão, amanha ou depois, a gente vai contar a quem não pode ver e é capaz de passar por mentiroso.

Não tenho dúvida em dizer que tardará muito até que apareça alguém que domine como Zico o dom de cobrar falta ali da meia-lua".

Armando Nogueira - A última noite (despedida de Zico)

"Celebremos, querido torcedor, a última noite do maior artilheiro da história do Maracanã. Será uma despedida de apertar o coração. Se te der vontade de chorar, chora. Chora sem procurar esconder a pureza da tua emoção. Basta uma lágrima de amor para imortalizar o futebol de um supercraque.

Cantemos, Maracanã, teu filho ilustre, relembrando em comunhão os dribles mais vistosos, os passes mais ditosos, os gols mais luminosos desse fidalgo dos estádios que tem uma vida cheia de multidões.

Louvemos o poeta Zico que jogava futebol como se a bola fosse uma rosa entreaberta a seus pés".





Comentário meu:


As palavras... elas estão onde sempre estiveram... junto com o mestre, mestre que nos ensinou um pouco como usá-las.  Agradecido para sempre ao Armando, que escrevendo sobre os esportes, que eu adorava, me despertou o amor pela escrita. Parte importante de que eu sou despertou para existência lendo as crônicas do Armando Nogueira. No fim só digo obrigado.











Um comentário:

Flaviano, O Flaivis disse...

Certamente, um dos poucos jornalistas esportivos a quem eu dava créditos. Achava suas crônicas geniais (pleonasmo) e tinha "sacadas" fantásticas.
Que descanse em paz, pois seu legado, a sua obra, viverá para sempre.